Do Eu ao Outro e reciprocamente.
Dizendo isso, meu colega André Luan e Eu escrevíamos, durante a graduação, um artigo sobre educação e alteridade.
De algum modo sinto-me repetitivo. Paradoxal, até. Afinal, como defender no título do discurso a abertura para o novo na prática pedagógica e iniciá-lo (o discurso) com aquilo que é não-inusitado?
Ao que parece, a contradição em que me encontro e que me permito declarar-lhes, esconde um fundo pusilânime, pois me mostro em uma posição de segurança e conforto intelectuais caminhando pelos mesmos sendeiros.
Entretanto, devo-lhes dizer que não achei frase melhor para começar. Sinceramente, quando redigi este texto não me sentia muito criativo. Talvez um pouco literário, mas não criativo.
Ademais, enunciar-me com o “do Eu ao Outro e reciprocamente” não implica repetição, mas a ratificação de algo que, por mais que sempre seja dito da mesma forma, adquire um novo sentido a cada vez, visto que a relação proposta, que está para além da dialética e da própria analética (por que não?), é uma relação de afeto e, que, portanto, não pode jamais ser a mesma. Ela é em-si sempre nova, por isso nunca é, mas está-sendo. É a idéia de movimento exterioriza melhor aquilo que se dá em relação.
Então, falemos desta relação:
O professor no curso de Direito assume uma função um tanto quanto angustiante. Ao passo em que é indispensável para fazer inserir seus pupilos no mundo jurídico, ensinando acerca de categorias jurídicas e novos vocábulos, bem como o diálogo entre tais categorias; é igualmente prescindível, porquanto todos os acadêmicos, presume-se, são alfabetizados e, por conseguinte, capazes de entender a problemática do Direito, bastando, para tanto, algumas horas de leituras diárias da doutrina ou de um dicionário especializado que tente desvendar os signos que se apresentam ao iniciante.
Contudo, o fenômeno se torna mais emblemático quando, além de viver sob o jugo do inafastável binômio necessidade-prescindibilidade, o professor toma para si a obrigação de servir como instrumento de emancipação social. Em outras palavras, o educador, para ser honestamente assim chamado, precisa ser um revolucionário. Não digo um revolucionário que sai com bandeiras que servem para além de expressar um ideia também depredar. Falo da descoberta de territórios desconhecidos (Warat), da possibilidade de uma profunda revolução do desejo. Tal como Warat, penso em microrrevoluções desejantes, que poderiam configurar o que Guatarri chamaria de uma nova cartografia dos desejos.
É isso mesmo, o professor de Direito, que muitas vezes “encena seu amor vencido pela lei” precisa desconstruí-la. A lei que em determinados momentos liberta, também é meio de manipulação e opressão legitimadas pela mídia e pelo poder público. A mesma lei que defende a vida, mata e castra. Na academia, o culto à lei ainda é constante, e isso se dá não porque se ama a lei, mas porque ela dá poder: o poder de quem conhece. Em termos foucaultianos: o “saber-poder”.
A propósito, para prosseguir em nosso passeio, é preciso falar de algo paralelo a ele, talvez de alguém que caminha ao lado, mas que, transgredindo as leis da geometria, deixa de trafegar paralelamente e vem ao nosso encontro, diagonalizando-se ou perpendicularizando-se. Pois bem, o “algo paralelo” de que falava concerne a um fenômeno da vida como um todo, não é particularmente intrínseco à academia, mas nela se potencializa e, surpreendentemente, exterioriza com mais força, embora veladamente.
Falo agora das formas de relacionamento que a sociedade possui: de um lado aquela em que predomina o Amor e, de outro, aquela em que o poder se sobressai. Nas relações de poder pensa-se o mundo em termos de hierarquia, e esta pode se apresentar de infindáveis maneiras. Na sala de aula, a postura sobranceira, arrogante e antidemocrática do professor expressam bem isso.
Por sua vez, as relações de amor são pensadas a partir do ponto de vista da igualdade com o respeito às diferenças. Boaventura de Sousa Santos disse uma vez que “temos direito à igualdade sempre que a diferença nos inferioriza, mas temos direito à diferença toda vez que a igualdade nos descaracteriza.” Assim, não falamos em no respeito ao Outro por temor do poder que este possui, mas porque sentimos esta necessidade. Trata-se muito mais de uma questão de sensibilidade do que de uma razão racionalizante que se prende aos ditames do poder e a ele determina sejamos submetidos.
Em outros termos, o amor enquanto norteador inter-relacional exige o contato com o Outro em termos de igualdade. Para ser correto, sequer é necessário este pensamento, eis que pensar designa fenômenos da consciência, e o amor, ao contrário, está no campo do inconsciente. É tão evidente que pode estar escondido.
Na academia, assim como na vida social, costuma sair vitorioso o poder. Mas isso só ocorre quando há uma carência enorme. Explico melhor: a psicanálise, e antes a filosofia com Schopenhauer, já nos ensinaram que somos seres desejantes. E o somos porque somos carentes. Só se deseja algo que não se tem, ou que se tem em níveis insatisfatórios. Então, pela lógica capitalista individualista, ao invés de nos relacionarmos sincera e abertamente com os que nos rodeiam, edificamos muralhas que só nos permitem visualizar e sermos visualizados. E só.
Nosso orgulho não nos permite assumir essa condição de carência. Então, tentamos acumular e exteriorizar poder tanto quanto nos for permitido. Na realidade, este modo de se conduzir acoberta uma falta imensurável. Quanto maior o desejo de acúmulo e exteriorização de poder maior é a carência. Como dizia Jung, “que a sombra aumenta proporcionalmente com a luz é uma regra psicológica.”
Antes que eu esqueça, tenho que lhes dizer como vejo a interação educador-educando. Os preceptores são como pais, os acadêmicos, filhos. E às vezes a família se desentende. Aliás, uma intolerância (maldita) permeia essa relação frequentemente. É claro, temos uma tendência natural a exigir a perfeição daqueles que amamos: pais e filhos se amam e, via de consequência, idealizam-se mutuamente, em que pesem as reações, vez ou outra, soarem um tanto agressivas.
Mas nós, enquanto acadêmicos, precisamos também da reflexão como meio para a compreensão, pois os professores, assim como nós, são crianças, e a pergunta: o que queremos ser quando crescermos? Talvez tenha como resposta: “ser igual ao meu professor”. Daí dizer, com Renato Russo, que precisamos nos amar como se não houvesse amanhã. E cá entre nós: na verdade não há. Costumamos dizer que nossos professores não nos entendem, mas e nós: os entendemos?
Bem, já me alonguei o suficiente para que o discurso se tornasse enfadonho, ininteligível e cheio de vaivens. Por sinal enunciei aqui um discurso inconstante. Diria até: um discurso da impermanência. Não poderia ser diferente, posto que ele trata da educação como um processo fundante da nossa subjetividade, a qual é construída a partir de nossas escolhas e desejos (como dito por André Newmann, interpretado por Michel Melamed) , mas de nossas escolhas e desejos em relação às escolhas e desejos do Outro – destacaria aqui, com Guatarri e Levinás: o “entre-nós” pedagógico como espaço da subjetividade (enquanto processo de subjetivação).
Não é à toa que tal ocorre. O vir-a-ser dos signos e da sua concatenação segue a lógica do devir afetivo inerente à vida. Opera-se, então, a reciprocidade afetiva inaugural. Os educandos, enquanto Outro da relação voltam-se ao Eu docente. Assim, caros mestres, assevero-lhes: quem vos fala não é o preposto duma coletividade de formandos: quem vos fala, são os nossos corações.