domingo, 22 de maio de 2016




Legitimação e desigualdade - ou imobilismo e retrocesso: uma análise discursiva sobre o (positivista) lema "ordem e progresso" inscrito na bandeira nacional


1. Breve introito

            Em tempos de crise que, fatalmente, envolvem o poder em suas mais diversas expressões, ressalta não só a força, mas também o seu caráter simbólico. Diante desse quadro, é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com uma cumplicidade daqueles que não querem saber se lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem[1].
            Criada pelo Decreto nº 4, de 19 de novembro de 1889[2], ainda sob o Governo Provisório de Marechal Deodoro da Fonseca, a bandeira nacional traz em uma zona branca, que atravessa a esfera azul, a inscrição de uma famosa legenda, qual seja, ordem e progresso - ora objeto de análise. Tal lema remonta diretamente ao ideal positivista, incorporado sobretudo pelo declarado seguidor de tal forma de pensar, o então General Benjamin Constant. Faz-se necessário verificar que o aludido general foi um dos signatários do aludido Decreto nº 4/1889 - embora se diga que a sua participação tenha sido deveras tímida, de caráter somente legitimador, já que os idealizadores teriam sido Teixeira Mendes e Miguel Lemos[3].
            O positivismo (ou filosofia positivista) é uma doutrina atribuída sobretudo a Auguste Comte (1798-1857) e se caracteriza pela assunção do método das ciências naturais para a ciências sociais (naturalismo positivista), já que se acreditava que, do mesmo modo como (…) foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade[4].
            A propósito do positivismo, a legenda ordem e progresso é um extrato de um célebre mantra comtiano: L'Amour pour principe; l'ordre pour base, et le Progrès pour but[5], que acabou por ser sintetizado na bandeira nacional. Mas afinal, qual o problema ou o que justificaria uma análise crítica a partir dessa contextualização histórica da criação da bandeira e, ainda, o que importaria para hoje (meados de maio de 2016) refletir acerca disso tudo - cenário de crise política?
            Pois bem, a pergunta acima se desdobra em duas, de modo que acerca e cada uma delas se falará adiante.

2. O nefasto discurso positivista: a ordem como legitimação e o progresso como desigualdade

            Uma análise superficial e imediata do lema constante na bandeira nacional levaria a mais bem intencionada das pessoas a com ele concordar, apressando-se em afirmar que o significado é claro: manutenção da ordem institucional (envolvendo a economia e a política, sobretudo) para que se alcance o progresso.
            Tal interpretação não é de todo errada se tomada literalmente a inscrição em um dos símbolos nacionais. Entretanto, há que se fazer aqui a análise do discurso que essa legenda esconde para, somente então, ser possível a emissão de um juízo fundamentadamente.
            O modo de pensar positivista de Auguste Comte consiste, de algum modo, numa ruptura. Diz-se isso porque mesmo dizendo que Condorcet era seu precursor, atribuía a este determinados preconceitos revolucionários que impediriam a identificação das leis sociológicas. Mais que isso, Comte rompe com o ideal iluminista justamente para conservar agora um modo de vida instalado no pós-revolução: o modo de vida burguês. Isso se volta, de algum modo, contra a classe trabalhadora, tanto que em mais de um momento Comte faz afirmações lamentáveis, baseando-se no seu naturalismo positivista.
            Segundo o aludido autor, haveria uma necessidade de se promover a defesa das leis naturais que, no sistema de sociabilidade moderno, devem determinar a indispensável concentração das riquezas entre os chefes industriais, de modo que ‘os proletários reconhecerão, sob o impulso feminino, as vantagens da submissão e de uma digna irresponsabilidade (…)[6]         Caberia, então à doutrina positivista o papel de ‘de preparar os proletários para respeitarem, e mesmo reforçarem, as leis naturais da concentração do poder e da riqueza…[7]
            É nesse ambiente filosófico que o discurso da ordem e progresso se insere. E não se olvide: a positivismo, caracterizado pela (frustrada) tentativa de neutralidade científica, promove, sim, a neutralização das forças de transformação da sociedade, mantendo-a profundamente desigual. Pior: o discurso positivista visa legitimar, por meio da sua suposta cientificidade, o modo de produção burguês. Em outras palavras, o conhecimento científico positivista ao tempo que diz revelar (as leis da sociedade), também esconde (o caráter ideológico dessa neutralidade).
            Não é necessário aqui adentrar nos pormenores das críticas - e elas são numerosas - feitas ao modelo positivista nas ciências sociais, que, no mais das vezes, serve de justificativa a um regime de poder - é a clássica relação de saber-poder. Cabe aqui aduzir, tão somente, que há os que digam que não se pode criticar o passado com os postulados do presente. Pois bem, a despeito das (também muitas) ressalvas a se fazer, partir-se-á para a crítica do momento presente e de como em momento de crise recorre-se ao discurso da estabilidade e da justificação da desigualdade.

3. Primeiro como tragédia, depois como farsa (e mais uma farsa) e a história se repete em pleno século XXI: o discurso do imobilismo pacífico (ou não é paz, é medo) e o retrocesso social (ou progresso para quem?)

            O pensamento comtiano não é um episódio desapegado da história; não o é, sobretudo, desprendido de uma ideologia e não deixa de ser a voz que ecoa num contexto pós-revolucionário. Trata-se do cenário subsequente à revolução francesa, no qual a burguesia ascende ao poder e os ideais revolucionários que moveram a queda do Ancien Régime agora precisam ser arrefecidos, sob pena de instabilidade.
            É um acontecimento comum na história do ocidente: aqueles, antes revolucionários, ao tomarem o poder adotam a tática da coalizão ou da união, sempre buscando que as transformações cessem, porquanto só interessavam até à assunção do poder - e isso aconteceu com movimentos de direita e de esquerda, não se iludam os que simpatizam com um ou outro.
            No Brasil, a Proclamação da República se deu de forma não revolucionária - ao contrário do cenário europeu. Aqui, a queda do Império, que resultou na chamada "Revolução Republicana' não foi nada mais que um ato simbólico de conspiração de um pequeno grupo de idealistas políticos e pragmáticos militares, assim como o resultado de uma marcha militar no Rio de Janeiro. Não foram armadas barricadas e tampouco teve alguém que morresse como herói pela República.[8]
            Ademais, como bem nota Paul Wolf, professor da Universidade Goethe, o partido republicano que arquitetou a tomada do poder com os militares era formado por uma fração dissidente do partido liberal. Ele não tinha apoio popular, muito menos era movido por um sincero impulso de transformação social. Era, sim, fruto da correlação de forças que jamais visou a supressão radical das estruturas feudais, isto é do coronelismo, mas era resultado da clara insatisfação político-econômica com o governo do Império, com a Lei de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre) e de 13 de maio de 1888 (Lei Áurea), que aboliu a escravidão.[9]
            Não obstante, Oliveira Vianna evidencia o que pensavam os positivistas que encaparam a Revolução Republicana:

Nesse grupo de ideólogos da República e de declamadores ronflants, destacava-se um pequeno contingente, para quem a crença no ideal republicano tinha uma sólida base filosófica. Eram os positivistas.
Os positivistas eram republicanos, mas à sua maneira, à sua originalíssima maneira. (…) os positivistas, no idealizarem a sua organização republicana (…) não pareciam cortejar o elemento democrático; pelo menos, no tipo de governo que concebiam, a Democracia não ocupava um grande lugar; pode-se dizer mesmo que tinha pouco que fazer. Eles tinham em suspeição as maiorias populares e mesmo as maiorias parlamentares; faziam o possível para evitar a intervenção da Democracia nos negócios do governo – e não há dúvida que faziam muito bem. Pareciam dizer como Robert Michels: – “Dans un parti, et plus particulièrement dans un parti politique de combat, la démocratie ne se prête pás à l’usage domestique: elle est plutôt un article d’exportation.”[10]
O governo do seu sonho, o governo ideal, o governo perfeito era a República Ditatorial, de Comte – e não a República Democrática, de Ledru-Rollin: por isso, achavam que, na elaboração da Constituição Republicana, não se devia apelar para “o perigoso recurso de uma Assembléia Constituinte” – e era o próprio Governo quem a devia decretar.[11]

               
            Depreende-se que a legenda ordem e progresso é inserida na bandeira nacional em um contexto político de um falsa revolução (republicana), pois ao fim e ao cabo o que ocorreu foi a união dos que tinham à época poderio econômico e, que, sentindo-se prejudicados por várias medidas, especialmente as ligadas ao abolicionismo, acabaram por golpear a monarquia que estava a contrariar os seus interesses. Nessa mesma esteira, percebe-se que o elemento democrático passa ao largo dos interesses republicanos de motivação positivista. Também não era de se esperar nada diferente disso a considerar que o que os movia era a doutrina comteana.
            Portanto, sem ser legítimo e sem ser revolucionário - embora se afirmasse o contrário, o movimento republicano ao instaurar a república apressou-se em adotar o lema do conservadorismo, como recado à população e às instituições de que há esperança no progresso, desde que esteja estabelecida a ordem.
            Agora um salto histórico e mais uma farsa…
            O ano é 2016. A presidente da república é afastada por um processo de impeachment que toda a mídia e os organismos internacionais reconhecem como um golpe de Estado. Golpe porque embora esteja previsto na Constituição da República, vem sendo utilizado como mero mecanismo de legitimação da derrubada da chefe do Poder Executivo sem um crime de responsabilidade - no máximo há simulacros, discursos vazios de que teria ocorrido crime que ensejaria o afastamento, mas esse não é o tema central e, menos ainda, objeto de análise do parlamento, que preferem argumentos outros que não aqueles exigidos juridicamente. Unem-se a mídia tradicional brasileira, os partidos conservadores e, ainda, o vice-presidente que, antes ligado a um governo teoricamente de esquerda, agora flerta e firma o compromisso (um namoro mal explicado) com toda a direita.
            Para tanto, e como modo de sinalizar o intuito de assunção do poder, o PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer, para "agradar a Economia" lança um documento chamado "Uma ponte para o futuro"[12], no qual são apresentadas propostas para que o país retome o crescimento econômico - isso não sem sacrifícios dos mais pobres, como, por exemplo, no caso do item "i": na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos.
            Mas ainda não se chegou ao cerne da presente crítica. Isso não tardará mais a acontecer.
            Afastada a presidente Dilma Roussef, o agora presidente interino Michel Temer, em seu discurso de posse lança duas premissas para o seu governo. A primeira, segundo afirma, foi vista por ele em um posto de gasolina, quando abastecia um automóvel, que dizia: "Não reclame da crise, trabalhe!" No mesmo discurso, é lançada a segunda premissa, elevada a slogan do "novo" governo, a conhecida legenda da bandeira nacional: "ordem e progresso"[13].
            É triste perceber que tão logo assumiu o poder, e toda aquele ímpeto de combate à corrupção[14], luta por mais direitos aos cidadãos, diminuição da carga tributária[15] etc se esvai com duas expressões neutralizadoras de fundo bem conhecido: a alienação por meio do trabalho.
            O cenário político-econômico que se criou com a FIESP encabeçando o boicote empresarial ao governo Dilma - basta lembrar que Paulo Skaf, presidente da Fiesp é filiado ao PMDB, partido de Temer - , que, juntamente com a crise colaborou para as demissões em massa, agora fazem com que a classe trabalhadora, afoita por postos de trabalho (estimam-se 11 milhões de desempregados), aceitem docilmente oportunidades de emprego para manter o sustento de suas famílias. Isso sem protestos, sem questionamento sobre a crise, sem reclamações... eis a proposta. Portanto, vencida a etapa da ordem.
            Mas como manter uma massa silenciada? Com o discurso que carrega a esperança, cujo nome é progresso. Isso tudo com o apoio da mídia que diminuiu substancialmente as notícias envolvendo a crise e outdoors espalhados com a inscrição ordem e progresso, dando a impressão de que o anjo do progresso[16] está a vigiar a população a todo instante, tudo para que ela não esqueça de que precisa trabalhar e silenciar. Tudo para aceitar a dominação e entender que é preciso produzir riqueza e que esta deve se concentrar nas mãos dos grandes empresários, porque afinal de contas, são eles que garantem o seu modesto emprego, cujos direitos se encontrarão cada vez mais vilipendiados. Mas é o que sobra de esperança diante do caos ideológico intensificado discursivamente: o progresso, baseado na ordem, serve também para restabelecê-la - e a ordem é a do imobilismo social, em que uns acumulam e outros trabalham com os seus direitos precarizados, em franco retrocesso (ou progresso para poucos).
            Com Auguste Comte, a tragédia; com a revolução republicana: a farsa. Com Temer: a farsa ataca novamente. É século XXI, mas os discursos atrelados ao poder ainda enganam e convencem. Não mais como outrora, pois agora somos materialização contradiscursiva. Somos contradiscursos humanos e não vamos silenciar: nossa existência é o autêntico brado retumbante! Acolher a legitimação da desigualdade e o retrocesso social não é uma alternativa, menos ainda, uma necessidade. Se era sincero o grito orgulhoso à pátria de que verás que um filho teu não foge à luta, proferido tempos atrás, é hora de recarregar os espíritos de energia transformadora e não aceitar velhas táticas de dominação, por simples medo, que eles agora chamam de paz!






[1] BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 7-8. (Grifo nosso)
[2] Para acessar o Decreto nº 4, de 19 de novembro de 1889 basta acessar o link . Acesso em 15 de maio de 2016.
[3] http://www.bandeiranacional.com.br/. Acesso em 15 de maio de 2016.
[4] SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 65.
[5] "O amor por princípio, a ordem por base, e o progresso por finalidade" (Tradução livre) (COMTE, Auguste. Système de politique positive ou Traité de Sociologie, instituant Ia Religion de 1'Humanité. Tome Deuxième. Réimpression de 1'Edition 1851-1881. Osnabrück, 1967. p. 65. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5450b. Acesso em 15 de maio de 2016.
[6] No original: (…) les prolétaires reconnaîtront, sous l'impulsion feminine, les avantages de la soumission et d'une digne irresponsabilité (…).(COMTE, Auguste. Appel aux conservateurs. ed. L'Auteur Paris, 1855. p. 90). Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k833125/f126.item.r=.langFR. Acesso em 15 de maio de 2016.
[7] No original: ...elle disposera les prolétaires à respecter, et même à seconder, les lois naturelles de la concentration du commandement et de la richesse, au nom de la eficacité sociale. (COMTE, Auguste. Appel aux conservateurs. p. 91)
[8] Cf. FREIRE, Gilberto.Ordem e Progresso. Processo de desintegração das sociedades Patriarcal e Semi-patriarcal do Brasil sob o regime do Trabalho Livre, 2 vols. Rio de Janeiro 1959, 3 a ed. Rio de Janeiro-Brasília,1974
[9] PAUL, Wolf. Ordem e Progresso: origem e significado dos símbolos da bandeira nacional brasileira. Revista eletrônica da Universidade de São Paulo - USP. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67468/70078. Acesso em 15 de maio de 2016.
[10] Em um partido, e mais particularmente em um partido político de combate, a democracia não se presta ao uso doméstico: ela é sobretudo um artigo de exportação. (Tradução livre).
[11] VIANNA, Oliveira. O ocaso do império. 3 ed. Rio de Janeiro: ABL, 2006. p. 101-102. (Disponível em: . Acesso em 15 de maio de 2015.)
[12] http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf
[13] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-federal-ordem-e-progresso-sera-o-slogan-do-governo-temer,10000050764
[14] Embora tenha nomeado investigados ou suspeitos de crimes ligados ao exercício dos cargos que ocupam. Cf: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1771237-equipe-de-michel-temer-tem-investigado-e-citado-na-lava-jato.shtml
[15] Mas o novo Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, fala em "aumento temporário" da carga tributária: http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/05/pais-aguarda-mudanca-no-itinerario-da-economia-diz-meirelles.html
[16] "Há um quadro de Klee chamado Angelus Novus. Representa um anjo que parece estar a afastar-se de alguma coisa que contempla fixamente. Os olhos estão arregalados, tem a boca aberta e as asas estendidas. É este, seguramente, o aspecto do anjo da história. Ele tem a face voltada para o passado. Onde vemos perante nós uma cadeia de acontecimentos, vê ele uma catástrofe sem fim que incessantemente amontoa ruínas sobre ruínas e lhas via arremessando aos pés. Ele bem gostaria de ficar, de acordar os mortos e unir o que foi destroçado. Mas do paraíso sopra uma tempestade que lhe enfuna as asas e é tão forte que o anjo já não é capaz de as fechar. Esta tempestade arrasta-o irresistivelmente para o futuro, para o qual tem as costas viradas, enquanto o montão de ruínas à sua frente cresce até o céu. Esta tempestade é aquilo a que chamamos progresso." (BENJAMIN, Walter apud SANTOS, Boaventura. A gramática do tempo tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008., p. 53).

sábado, 30 de janeiro de 2016

Preâmbulo às Instruções para dar corda no relógio - por Julio Córtazar

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você – eles não sabem, o terrível é que não sabem – dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrinas das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.

(CÓRTAZAR, Julio. História de cronópios e de famas. Trad. Gloria Rodríguez. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p.27)

domingo, 9 de junho de 2013

Excerto de "O reconhecimento do Amor" - por Drummond

(…)
Como nos enganamos fugindo do amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro
o Outro que eu me supunha, o Outro que eu te imaginava,
quando – por esperteza do amor – senti que éramos
                                                                                 [um só.

(Carlos Drummond de Andrade)




terça-feira, 23 de abril de 2013

O desejo - ou Um (quase) amor louco

Eis mais um pequeno poeminha
escrito em minha recente passagem
por Curitiba.
Fruto, sempre, de uma arrebatadora 
e paradoxal
liberdade arbitrária e,
casualmente,
poética.


Profundo
Perfunctório.
É o (meu/nosso) mundo
um grande sanatório.

De transgressor:
um relampejo
um (quase) amor:
forte desejo


segunda-feira, 22 de abril de 2013

(H)á-casos


Poeminha escrito em Curitiba numa tarde qualquer.
Aparentemente sem sentido (e ainda preserva 
tal característica), ganhou um pouco aos poucos
e para outros.
Mesmo assim, pura arbitrariedade poética...


A obrigação aqui me trouxe,
fez-me lembrar, porém, quem eu era.
À toa, indiferente... antes fosse.
A vida sob meu comando? quem me dera

Um encontro insólito,
um lugar inóspito.

Simplesmente, ao acaso...
Há o acaso?

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Sobre o Amor e a Justiça

Fonte: http://blocodecotas.wordpress.com/2012/09/19/amor-revolucionario/

(...) a justiça brota do amor. Isto não quer absolutamente dizer quer o rigor da justiça não se possa voltar contra o amor, entendido a partir da responsabilidade. A política abandonada a si mesma tem um determinismo próprio. O amor deve sempre vigiar a justiça.
(LÉVINAS, Emmanuel. Filosofia, justiça e amorIn: ____. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Stefano Pivato et al. Petrópolis: Vozes, 2005.p. 148.)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

(Ob)literar

Literar: neologismo que significa o ato ou efeito de praticar e (re)criar a literatura.
Ob: prefixo verbal em latim que transmite a ideia de oposição ou "encontro".
Obliterar: destruir, eliminar, suprimir.

Em um sonho (literário)...

Derrida dizia que é preciso des(cons)truir.
Pessoa, na biblioteca, exclamava: "literar é viver!!!".
Inquieto comecei a procurar, sem saber bem o que, 
foi então que encontrei um Machado,
um verdadeiro achado,
que arma literária era e
junto com Amado me fez pensar diferente,
Oh, que autor indecente!
Denunciava o moralismo barato, não escrevia
o mesmo de sempre.
Destruí então a literatura já morta
que mais do que nunca vivia
incrustada no imaginário...
Saí pela porta.
A porta que abri,
na parede que desconstruí,
voei como barata,
inseto que nem a bomba atômica mata.
Sábio Kafka!!!
Talvez dialogasse (ele) com Nietzsche.
Isso não descobri.
O que soube, por cima, foi que todos desejavam o "novo",
aquele desejo turvo, que de tão confuso e amorfo jamais
terminava de (de)formar(-se).
Agora sim havia vida,
não se sabe de que espécie.
A literatura então nascia (pela primeira vez),
e desta vez, pra nunca mais morrer.
A vida então passou a ser uma faceta do literário
e a literatura um campo vivificado.
Ora eu literava, ora eu vivia, ora os dois,
não sei bem como foi,
sei, porém, que era mais,
com Deleuze e com Blanchot era um devir (ou porvir como livro)
Aliás, foi o mesmo Blanchot que me ajudou a romper com aquilo
que chamavam de literatura, e até de poesia:
"não se faz poesia genuína dentro de regras, é preciso fazê-la e olhá-la de 'fora'."
Foi então que Drummond passou por mim, deu uma piscadela e disse:
"Eu não falei? Literatura só o é quando é 'nova'. E o será sempre que for uma literatura do 'fora'."
Acordei com um pensamento
alojado em meu cérebro, mas de fora de mim...
Ou (ob)litero minha literatura e a (re)crio,
ou continuarei a ser assim...