quarta-feira, 7 de março de 2012

Relato de um viajante rumo ao desconhecido: o percurso de um (andarilho) ledor de Sérgio Aquino


            Começo o meu percurso, perdido. Andei por um caminho que não era só meu. Aliás, por um caminho construído por outrem, mas trilhado por mim. Confesso que sem querer já tinha contribuído para a feitura da referida senda, mas nem eu, nem o feitor inicial o sabíamos: há sendas que se bifurcam[1].
            Parece-me um caminho prolixo (e ambíguo) o que escolhi para me enunciar. A quem não sabe sobre o que falo restam incompreensíveis as palavras. Não é só uma questão de sintaxe, é também de semântica, pois não parto de elementos tidos como lugar comum. Talvez o sejam, mas não avisei isso. Entretanto, pretendo fazê-lo conforme meu caminhar. Alguém aí quer me acompanhar?
            Pois bem, aos corajosos desejo as boas vindas. Estes saberão do que (e de quem) falo: da obra e seu autor. A obra: “Rumo ao desconhecido: inquietações filosóficas e sociológicas sobre o Direito na Pós-modernidade”. O autor: “Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino[2]”, meu nobre amigo e parceiro intelectual – ainda que a distância.
            Não pude deixar de fazer por escrito meus agradecimentos ao presente que me enviaste, caro amigo: seu pensamento traduzido em páginas de uma obra deveras instigante.
            Tendo me dirigido à sua pessoa (função conativa), passo a falar em geral, de um modo amplo não direcionado a ninguém, mas a um fato, ou melhor, a um conjunto de fatos, fenômenos, sensações e reflexões (função referencial) suscitadas a partir da leitura de seu agradável livro…
            Iniciar com Maffesoli uma obra denota, indubitavelmente, uma audácia típica do espírito Pós-moderno: trata-se de um respeito notável pelo potencial afetivo, que proclama a Razão Sensível como uma força vital, a qual, na Modernidade, foi arrefecida por conclusões demasiado racionalistas e que, sublimando o desejo, engenharam a maquinaria do poder em desrespeito à pessoa em sua humanidade.
            A experiência do sensível, vivida no cotidiano, prova que não podemos nos apegar aos ditames logicistas abandonando nossas pulsões. Tratar-se-ia de um assassinato do desejo[3], fato com o qual não se pode corroborar. Já é tempo de nos abrirmos ao novo ao que é de fora de nós e do sistema (pseudo)perfeito criado pela Razão Moderna. Para isso, digo uma vez mais: é preciso ter coragem e “(…) tomar parte na destruição de ideais ou de teorias obsoletas, ainda que isso deva perturbar algumas sonolências dogmáticas.”[4]
            Foi isso que Sérgio fez: combateu, ao modo Pós-moderno, a obsolescência moderna e “(…) o ciclo virtuoso das análises óbvias. Dessas análises sem vida, feitas mais de virtuosismo que de amor.”[5]
            Perpassando pela tese que vê o Direito como um fenômeno sociocultural (Miguel Reale) e, lançando sobre o discurso jurídico a análise semiológica, a obra de Sérgio desvenda os mito jurídico moderno[6] da inverídica e indesejável assepsia de que é provida o Direito, segundo assinala o Positivismo Lógico.
Não obstante, tendo o Direito como produto da cultura (Reale), construído cotidianamente (Maffesoli), e orientado pela Política Jurídica de Osvaldo Ferreira de Melo, que propõe uma nova forma de se pensar o Direto, sobretudo a partir de critérios como a Justiça, a Legitimidade e a Utilidade, que culminariam na “(…) realização de novas utopias carregadas de esperança”[7], Aquino explana sua obra, trilha seu caminho e convida o leitor a percorrê-lo também, como que num passeio ao léu[8] waratiano. Não se pode adjetivar Aquino de “totalitário” que, seduzindo-se pelas próprias idiossincrasias, universaliza (forçosa e falaciosamente) seu pensamento considerando todo o resto como um erro. Pode-se, sim, falar de um chamado, não só para se chegar ao (desconhecido) destino, mas também para caminhar, ou mesmo navegar – afinal, “é preciso”, diz o poeta[9] – , pois o próprio trajeto é suficiente para tornar o convite irrecusável.
Aqui uma pausa metalinguística é inevitável. Ao escrever, perdi-me, como fiz ao ler, ou melhor, ao deambular pelas linhas da inquietante obra de Sérgio. Comecei narrando um percurso, ou seja, fiz transparecer a ideia de movimento (narrativa em devir). Em seguida, descrevi lugares deste percurso, o que, por sua vez, tem muito mais a ver com algo estanque, definitivo. Dito de outro modo: elenquei (sinteticamente) lugares, partes, fragmentos do caminho, como se fosse possível fazê-lo sem incidir no erro da Modernidade: fragmentar o saber[10] e (frustradamente) tentar elevá-lo ao patamar do universalismo.
Mas ainda é tempo de me encontrar. Saber onde me encontro ou pelo menos de onde devo reiniciar a partida. Dizia eu que caminhava perdido por um caminho que não era só meu. Assim me exprimi para mostrar a relação entre escritor e leitor. Aquele, ao fazer sua obra, traça um caminho que leitor, assim como ele próprio (o autor), caminha para se chegar um lugar. Vão em rumo a algum local – na obra de Aquino, o rumo é ao desconhecido.
O desconhecido o é não porque não se tem sequer noção dos elementos que o compõem, mas porque estes mesmos elementos têm sua potencialidade tão suprimida que, verdadeiramente, não podem ser classificados como conhecidos. “O amor, o respeito, a dignidade, a tolerância, ou seja, os sentimentos que perpassam o exercício da cidadania”[11] são conhecidos discursivamente. Na experiência vivida, ainda que estejamos e valorizemos o período pós-moderno, os sentimentos sobreditos ainda padecem da liberdade que lhes é necessária, basta pensar na força que a indiferença (disfarçada de igualdade) possui.
Desconhecido, para mim, não era todo o trajeto. Até mesmo o trilhei parcialmente antes da obra, eis que conhecia Maffesoli, Warat além de outros e com eles caminhei ao léu. Por isso asseverei que de alguma maneira havia depositado minha contribuição para a feitura do caminho, mesmo sem o saber e sem que Sérgio soubesse. Entretanto, desconhecia muitos trechos da trilha, o que me agregou sobremaneira um conhecimento topográfico-humanista notável. Pude caminhar com Osvaldo Ferreira de Melo, com quem jamais o havia feito. Ademais, caminhei de formas diferentes com autores que já conhecia.
Porém, como a todos que adentram numa vereda, não era só o atrativo do percurso que me interessava, objetivava eu um destino e este foi um lugar eticamente belo (a ética como fundamento estético da convivência), no qual, ao serem preservados os “(…) eixos (mínimos) [o amor, o respeito, a dignidade, a tolerância], constroem-se normas cujos valores não se perdem com o tempo, ao contrário, afirmam a percepção de uma Cultura cujo conteúdo respeita e concretiza o belo sentido da condição humana, por um lado, e a sua infinita possibilidade de aperfeiçoamento por outro.”[12]
Foi por isso que em minha exposição inaugural aduzi acerca de uma construção conjunta sem que um e outro soubéssemos disso, pois me servindo de outros baldrames filosófico-sociológico-jurídicos convergimos para um mesmo espaço de destino: rumamos ao desconhecido cada qual de seu jeito, cada qual pelo caminho que escolheu. Caminhos paralelos que se atravessam – há pontos de intersecção na trilha – mas que desembocam num mesmo lugar: um território desconhecido[13].
Em suma, ao ter em mãos a obra de Sérgio Aquino, além das inquietações inúmeras, das reflexões inevitáveis e da surpresa a cada parágrafo, tive também a lembrança de Warat, quando dizia que há jardins em que as sendas se bifurcam. Posso dizer que saímos do jardim da racionalidade moderna, bifurcamos a vereda e rumamos ao (desconhecido) jardim pós-moderno. Lá não encontramos um espaço totalitário, nem jurídica, nem socialmente, pois lá é o espaço em que, como diz Aquino, consolida-se a condição humana e onde o potencial de aperfeiçoamento é infinito, posto que está sempre sujeito à mudança, afinal é regido pelos eixos – em devir – da tolerância, da dignidade, dos afetos e da ética como fundamento estético da existência humana.
Caro Sérgio. Grato por me presentear com sua (esteticamente agradável) obra. Desculpe-me (eticamente) pela demora em sinalizar minhas (mais entusiasmadas) impressões acerca dela. Bem sabemos que na pós-modernidade o tempo é líquido, fluido. Tão fluido que nos escapa às mãos e não nos permite (ou ao menos dificulta) reflexões profundas e, mais ainda, a exteriorização delas, sobretudo em se tratando de obra tão rica como a sua.
Meus sinceros agradecimentos.
Grande abraço…



Everton Luís da Silva
Gêmeas do Iguaçu
(União da Vitória/PR e Porto União/SC)
04/03/2012


[1] WARAT, Luis Alberto. El jardin de los senderos que se bifurcam. In: _____. Epistemologia e ensino do Direito: o sonho acabou. v. II. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p.469-484
[2] O autor é Doutorando e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Especialista em Administração Global pela Universidade Independente de Lisboa - UNI. Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. É editor do Blog “A Utopia do Direito”, com endereço: http://sergioaquino.blogspot.com/
[3] ROCHA, Fábio Libório. Schopenhauer e o assassinato do desejo – a servilidade do sujeito balizada sob dois aspectos: a liberdade e a racionalidade. União da Vitória: Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras. nº 75. Kaygangue, 2003. 118 p. (Coleção Vale do Iguaçu).
[4] MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Trad. Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 13.
[5] MAFFESOLI, Michel. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. p. 11 apud AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Rumo ao desconhecido: inquietações filosóficas e sociológicas sobre o Direito na Pós-modernidade. Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí, 2011. p. 33.
[6] GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Trad. Arno Dal Ri Jr. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. 150 p.
[7] MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica. p. 19 apud AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Op. Cit. p.138.
[8] WARAT, Luis Alberto. O amor tomado pelo amor, p. 308.
[9] PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987. p. 1.
[10] Descartes diz que para melhor considerar as matérias em particular “(…) teria de supô-las como linhas, porque não encontrava nada mais simples que pudesse representar mais distintamente à minha imaginação e aos meus sentidos; mas, para reter e compreender várias ao mesmo tempo, eu precisava explicá-las por alguns sinais, os mais curtos possíveis, e que, deste modo, aproveitaria o melhor da análise geométrica e da álgebra e corrigira todos os defeitos de uma pela outra.” (DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 25.)
Um esclarecimento é importante: Descartes não fitava elevar suas considerações a patamares universais. Segundo Boaventura, trata-se mais de uma “(…) maravilhosa autobiografia espiritual” (SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 61). A ideia de universalidade remonta a outros pensadores modernos.
[11] AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Rumo ao desconhecido, p. 148.
[12] AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Rumo ao desconhecido, p. 148.
[13] Referência à (irrepreensível) coletânea de obras: WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. v. I. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. 583 p.


2 comentários:

  1. A amizade é o maior significado que a pessoa t~em na vida, porque, por meio dela, pode-se encontrar o bem e o mal, o belo e o feio, o certo e o incerto, a finitude e a infinitude. Todas essas cores se misturam e compôem uma bela obra de arte barroca que nada impôe, mas compreende cada aspecto dessa composição pacientemente. Eis o afeto primordial que identifica a infinitude e a peregrinação humana no reconhecimento do "Outro absolutamente Outro" (lévinas).

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  2. É a amizade - a exemplo do Amor - como um ato de fé. Há que se reconhecer este absolutamente Outro sem desejar dele uma contrapartida agradável. A amizade, enquanto afeto, cria um espaço de incerteza, longe da segurança racional que torna mais frias e menos espontâneas as relações humanas.

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