Começo
o meu percurso, perdido. Andei por um caminho que não era só meu. Aliás, por um
caminho construído por outrem, mas trilhado por mim. Confesso que sem querer já
tinha contribuído para a feitura da referida senda, mas nem eu, nem o feitor
inicial o sabíamos: há sendas que se bifurcam[1].
Parece-me
um caminho prolixo (e ambíguo) o que escolhi para me enunciar. A quem não sabe
sobre o que falo restam incompreensíveis as palavras. Não é só uma questão de
sintaxe, é também de semântica, pois não parto de elementos tidos como lugar comum. Talvez o sejam, mas não
avisei isso. Entretanto, pretendo fazê-lo conforme meu caminhar. Alguém aí quer
me acompanhar?
Pois
bem, aos corajosos desejo as boas vindas. Estes saberão do que (e de quem)
falo: da obra e seu autor. A obra: “Rumo
ao desconhecido: inquietações filosóficas e sociológicas sobre o Direito na
Pós-modernidade”. O autor: “Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino[2]”,
meu nobre amigo e parceiro intelectual – ainda que a distância.
Não
pude deixar de fazer por escrito meus agradecimentos ao presente que me
enviaste, caro amigo: seu pensamento traduzido em páginas de uma obra deveras
instigante.
Tendo
me dirigido à sua pessoa (função conativa), passo a falar em geral, de um modo
amplo não direcionado a ninguém, mas a um fato, ou melhor, a um conjunto de
fatos, fenômenos, sensações e reflexões (função referencial) suscitadas a
partir da leitura de seu agradável livro…
Iniciar
com Maffesoli uma obra denota, indubitavelmente, uma audácia típica do espírito
Pós-moderno: trata-se de um respeito notável pelo potencial afetivo, que
proclama a Razão Sensível como uma
força vital, a qual, na Modernidade, foi arrefecida por conclusões demasiado
racionalistas e que, sublimando o desejo, engenharam a maquinaria do poder em desrespeito
à pessoa em sua humanidade.
A
experiência do sensível, vivida no cotidiano, prova que não podemos nos apegar
aos ditames logicistas abandonando nossas pulsões. Tratar-se-ia de um
assassinato do desejo[3],
fato com o qual não se pode corroborar. Já é tempo de nos abrirmos ao novo ao que é de fora de nós e do sistema (pseudo)perfeito criado pela Razão
Moderna. Para isso, digo uma vez mais: é preciso ter coragem e “(…) tomar parte
na destruição de ideais ou de teorias obsoletas, ainda que isso deva perturbar
algumas sonolências dogmáticas.”[4]
Foi
isso que Sérgio fez: combateu, ao modo Pós-moderno, a obsolescência moderna e
“(…) o ciclo virtuoso das análises óbvias. Dessas análises sem vida, feitas
mais de virtuosismo que de amor.”[5]
Perpassando
pela tese que vê o Direito como um fenômeno sociocultural (Miguel Reale) e,
lançando sobre o discurso jurídico a análise semiológica, a obra de Sérgio
desvenda os mito jurídico moderno[6]
da inverídica e indesejável assepsia de que é provida o Direito, segundo
assinala o Positivismo Lógico.
Não obstante, tendo o
Direito como produto da cultura (Reale), construído cotidianamente (Maffesoli),
e orientado pela Política Jurídica de Osvaldo Ferreira de Melo, que propõe uma
nova forma de se pensar o Direto, sobretudo a partir de critérios como a
Justiça, a Legitimidade e a Utilidade, que culminariam na “(…) realização de
novas utopias carregadas de esperança”[7],
Aquino explana sua obra, trilha seu caminho e convida o leitor a percorrê-lo
também, como que num passeio ao léu[8]
waratiano. Não se pode adjetivar Aquino de “totalitário” que, seduzindo-se
pelas próprias idiossincrasias, universaliza (forçosa e falaciosamente) seu
pensamento considerando todo o resto como um erro. Pode-se, sim, falar de um
chamado, não só para se chegar ao (desconhecido) destino, mas também para
caminhar, ou mesmo navegar – afinal, “é preciso”, diz o poeta[9] –
, pois o próprio trajeto é suficiente para tornar o convite irrecusável.
Aqui uma pausa
metalinguística é inevitável. Ao escrever, perdi-me, como fiz ao ler, ou
melhor, ao deambular pelas linhas da inquietante obra de Sérgio. Comecei
narrando um percurso, ou seja, fiz transparecer a ideia de movimento (narrativa
em devir). Em seguida, descrevi
lugares deste percurso, o que, por sua vez, tem muito mais a ver com algo
estanque, definitivo. Dito de outro modo: elenquei (sinteticamente) lugares,
partes, fragmentos do caminho, como se fosse possível fazê-lo sem incidir no
erro da Modernidade: fragmentar o saber[10] e
(frustradamente) tentar elevá-lo ao patamar do universalismo.
Mas ainda é tempo de me
encontrar. Saber onde me encontro ou pelo menos de onde devo reiniciar a
partida. Dizia eu que caminhava perdido por um caminho que não era só meu.
Assim me exprimi para mostrar a relação entre escritor e leitor. Aquele, ao
fazer sua obra, traça um caminho que leitor, assim como ele próprio (o autor),
caminha para se chegar um lugar. Vão em rumo a algum local – na obra de Aquino,
o rumo é ao desconhecido.
O desconhecido o é não porque não se tem sequer noção dos elementos
que o compõem, mas porque estes mesmos elementos têm sua potencialidade tão suprimida
que, verdadeiramente, não podem ser classificados como conhecidos. “O amor, o
respeito, a dignidade, a tolerância, ou seja, os sentimentos que perpassam o
exercício da cidadania”[11]
são conhecidos discursivamente. Na experiência vivida, ainda que estejamos e
valorizemos o período pós-moderno, os sentimentos sobreditos ainda padecem da
liberdade que lhes é necessária, basta pensar na força que a indiferença
(disfarçada de igualdade) possui.
Desconhecido, para mim,
não era todo o trajeto. Até mesmo o trilhei parcialmente antes da obra, eis que
conhecia Maffesoli, Warat além de outros e com eles caminhei ao léu. Por isso
asseverei que de alguma maneira havia depositado minha contribuição para a
feitura do caminho, mesmo sem o saber e sem que Sérgio soubesse. Entretanto,
desconhecia muitos trechos da trilha, o que me agregou sobremaneira um
conhecimento topográfico-humanista notável. Pude caminhar com Osvaldo Ferreira
de Melo, com quem jamais o havia feito. Ademais, caminhei de formas diferentes
com autores que já conhecia.
Porém, como a todos que
adentram numa vereda, não era só o atrativo do percurso que me interessava, objetivava
eu um destino e este foi um lugar eticamente belo (a ética como fundamento
estético da convivência), no qual, ao serem preservados os “(…) eixos (mínimos)
[o amor, o respeito, a dignidade, a tolerância], constroem-se normas cujos
valores não se perdem com o tempo, ao contrário, afirmam a percepção de uma
Cultura cujo conteúdo respeita e concretiza o belo sentido da condição humana,
por um lado, e a sua infinita possibilidade de aperfeiçoamento por outro.”[12]
Foi por isso que em
minha exposição inaugural aduzi acerca de uma construção conjunta sem que um e
outro soubéssemos disso, pois me servindo de outros baldrames
filosófico-sociológico-jurídicos convergimos para um mesmo espaço de destino:
rumamos ao desconhecido cada qual de seu jeito, cada qual pelo caminho que
escolheu. Caminhos paralelos que se atravessam – há pontos de intersecção na
trilha – mas que desembocam num mesmo lugar: um território desconhecido[13].
Em suma, ao ter em mãos
a obra de Sérgio Aquino, além das inquietações inúmeras, das reflexões inevitáveis
e da surpresa a cada parágrafo, tive também a lembrança de Warat, quando dizia
que há jardins em que as sendas se bifurcam. Posso dizer que saímos do jardim
da racionalidade moderna, bifurcamos a vereda e rumamos ao (desconhecido)
jardim pós-moderno. Lá não encontramos um espaço totalitário, nem jurídica, nem
socialmente, pois lá é o espaço em que, como diz Aquino, consolida-se a
condição humana e onde o potencial de aperfeiçoamento é infinito, posto que
está sempre sujeito à mudança, afinal é regido pelos eixos – em devir – da tolerância, da dignidade, dos
afetos e da ética como fundamento estético da existência humana.
Caro Sérgio. Grato por
me presentear com sua (esteticamente agradável) obra. Desculpe-me (eticamente)
pela demora em sinalizar minhas (mais entusiasmadas) impressões acerca dela.
Bem sabemos que na pós-modernidade o tempo é líquido, fluido. Tão fluido que
nos escapa às mãos e não nos permite (ou ao menos dificulta) reflexões
profundas e, mais ainda, a exteriorização delas, sobretudo em se tratando de
obra tão rica como a sua.
Meus sinceros
agradecimentos.
Grande abraço…
Everton
Luís da Silva
Gêmeas
do Iguaçu
(União
da Vitória/PR e Porto União/SC)
04/03/2012
[1] WARAT, Luis Alberto. El
jardin de los senderos que se bifurcam. In: _____. Epistemologia e
ensino do Direito: o sonho acabou. v. II. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2004. p.469-484
[2]
O autor é Doutorando
e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.
Especialista em Administração Global pela Universidade Independente de Lisboa -
UNI. Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.
É editor do Blog “A Utopia do Direito”, com endereço: http://sergioaquino.blogspot.com/
[3] ROCHA, Fábio Libório. Schopenhauer e o assassinato do desejo
– a servilidade do sujeito balizada sob dois aspectos: a liberdade e a
racionalidade. União da Vitória: Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e
Letras. nº 75. Kaygangue, 2003. 118 p. (Coleção Vale do Iguaçu).
[4] MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Trad.
Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. 4.
ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 13.
[5] MAFFESOLI, Michel. O ritmo da vida: variações sobre o
imaginário pós-moderno. p. 11 apud
AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Rumo
ao desconhecido: inquietações filosóficas e sociológicas sobre o Direito na
Pós-modernidade. Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí, 2011. p. 33.
[6] GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Trad.
Arno Dal Ri Jr. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2004. 150 p.
[7] MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica. p. 19
apud AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes
de. Op. Cit. p.138.
[8] WARAT, Luis Alberto. O amor tomado pelo amor, p. 308.
[9] PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1987. p. 1.
[10] Descartes diz que para melhor
considerar as matérias em particular “(…)
teria de supô-las como linhas, porque não encontrava nada mais simples que
pudesse representar mais distintamente à minha imaginação e aos meus sentidos;
mas, para reter e compreender várias ao mesmo tempo, eu precisava explicá-las
por alguns sinais, os mais curtos possíveis, e que, deste modo, aproveitaria o
melhor da análise geométrica e da álgebra e corrigira todos os defeitos de uma
pela outra.” (DESCARTES, René. Discurso
do método. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.
25.)
Um esclarecimento é importante: Descartes não fitava
elevar suas considerações a patamares universais. Segundo Boaventura, trata-se
mais de uma “(…) maravilhosa autobiografia espiritual” (SANTOS, Boaventura de
Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência.
6. ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 61). A ideia de universalidade remonta a outros
pensadores modernos.
[11] AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes
de. Rumo ao desconhecido, p. 148.
[12] AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes
de. Rumo ao desconhecido, p. 148.
[13] Referência à (irrepreensível)
coletânea de obras: WARAT, Luis Alberto. Territórios
desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e
da reconstrução da subjetividade. v. I. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
583 p.
A amizade é o maior significado que a pessoa t~em na vida, porque, por meio dela, pode-se encontrar o bem e o mal, o belo e o feio, o certo e o incerto, a finitude e a infinitude. Todas essas cores se misturam e compôem uma bela obra de arte barroca que nada impôe, mas compreende cada aspecto dessa composição pacientemente. Eis o afeto primordial que identifica a infinitude e a peregrinação humana no reconhecimento do "Outro absolutamente Outro" (lévinas).
ResponderExcluirÉ a amizade - a exemplo do Amor - como um ato de fé. Há que se reconhecer este absolutamente Outro sem desejar dele uma contrapartida agradável. A amizade, enquanto afeto, cria um espaço de incerteza, longe da segurança racional que torna mais frias e menos espontâneas as relações humanas.
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