— Vim te matar.
— A essa hora? Pra quê?
— Soube que você está escrevendo matéria sobre Sartre.
— É pecado?
— Em Curitiba, só eu posso escrever sobre Sartre.
— Com o perdão dessa arma apontada para mim, não sei o que vocês vêem nesse francês com cara de sapo, que acabou a vida mijando nas calças, num pileque contínuo.
— Vê lá como fala.
— Falo como Sartre falaria, diante de uma arma. Como você acha que ele falou, quando a Gestapo o prendeu, na Resistência?
— Esse não me interessa.
— Ah, você prefere o Sartre das palavras.
— Fora das palavras, não há salvação.
— Abaixe essa arma, pare de bobagem, sente aí e vamos conversar sobre.
— Está bem. Mas um gesto, e eu transformo seu para-si em em-si.
— Enquanto você elucubra aí, não se incomoda se eu terminasse de ler isso aqui?
— Sobre o que é?
— Adivinhe.
— Ah, sei.
— Que é que você acha disso: “Sartre é o último filósofo grega Depois dele, só são possíveis MacLuhans”.
— Não acho nada.
— “Teórico e ficcionista, antes de tudo, teve pela ação e pela militância um amor não correspondido: todas as suas agitações políticas, em termos de ação, sobre a sociedade francesa, foram menos que um fracasso. Foram apenas o nada”.
— Continue.
— “Contra o existencialismo, Sartre cometeu o crime supremo. Escreveu O ser e o nada, vasto tratado, suma teológica de uma doutrina filosófica que exalta a experiência individual, anti-teórica e contrária a toda e qualquer suma teológica. Cedo, Jean Paul percebeu que a forma perfeita para a exposição de suas teorias já existia. Não era o discurso conceitual de seus mestres, o teutônico delírio conceitual de O Ser e o Tempo, de seu mestre germânico Heidegger, o estilo de jogo de Kant e de Hegel. O existencialismo, por sua própria natureza, só poderia ser exposto através da ficção. Do conto. Da novela. Do romance. Com Sartre, a ficção transformou-se no gênero literário (textual) do existencialismo, veículo ideal de seus princípios”.
— Prossiga. Ainda lhe concedo uma página.
— “Difícil dizer, em Sartre, se é o filósofo que abastece o escritor ou o escritor que abastece o filósofo. De qualquer forma, o autor de A náusea deu à literatura o status e a dignidade da filosofia. E, naturalmente, à filosofia, a cor e o movimento da literatura. Criou conceitos que se tornaram, em nossa época, moeda comum. A expressão “engajamento”, foi ele que criou. “Autencidade”. “Angústia”. “Má consciência”. “Escolha”. E teve dois amores: Simone de Beauvoir e o marxismo...”
— Pare aí, senão...
— Deixe eu pular para: “A invasão da Hungria pela
União Soviética, para sufocar um movimento popular e nacional,
fez com que Sartre rompesse seu alinhamento com a URSS
stalinista. Como teórico, aliás, não deve ter sido fácil a tarefa do
profeta das “caves” post-guerra, cheias de pré-beatniks, camisas
de gola enrolada, barbas por fazer, jazz e álcool na cuca. Seus
filhos, depois seriam, nos Estados Unidos, “beatniks”. E seus
netos, os “hippies”. O existencialismo é a metafísica do
individualismo ocidental e capitalista”.
— Páre, senão eu atiro.
— Não atire. Eu me rendo. Digo aqui que “O problema teórico de Sartre foi, sendo existencialista, isto é, seguidor de Kierkegaard, assumir um pensamento hegeliano, como o marxismo. Existencialismo e Hegel não combinam. Para Hegel e o marxismo, saído dele, o concreto é o geral: a classe social, o sindicato, o Estado. O particular e o individual não passam de abstrações. Para Kierkegaard de o Existencialismo é exatamente o oposto. O geral é abstrato. O individual é concreto. Sartre nunca conseguiu resolver essa contradição. Ainda bem. Ao que tudo indica, não tem solução”.
— Fique aí onde está.
— “O interessante em Sartre é que esse conflito filosófico de grandes proporções acaba sendo pai e mãe de sua ficção e seu teatro, única saída que achou para conciliar Hegel e Kierkegaard”.
— Mais uma dessa não vou aturar.
— “No fundo, o existencialismo de Sartre é a tradução da impotência política da intelectualidade francesa, no quadro histórico da França do pós-guerra”.
— Não é o bastante.
Um tiro na noite é coisa que quem dorme nem nota.