segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Um passeio ao léu entre pais e filhos: a prática pedagógica do novo – ou o ensino jurídico como um incidente de ternura

O presente post foi extraído do discurso aos mestres redigido e lido por mim na cerimônia de colação de grau, onde alertei os ouvintes da necessidade de não tomá-lo (o discurso) a partir da mera razão, mas apreendê-lo com o coração. Aqui, reitero o alerta...

Do Eu ao Outro e reciprocamente.
Dizendo isso, meu colega André Luan e Eu escrevíamos, durante a graduação, um artigo sobre educação e alteridade.
De algum modo sinto-me repetitivo. Paradoxal, até. Afinal, como defender no título do discurso a abertura para o novo na prática pedagógica e iniciá-lo (o discurso) com aquilo que é não-inusitado?
Ao que parece, a contradição em que me encontro e que me permito declarar-lhes, esconde um fundo pusilânime, pois me mostro em uma posição de segurança e conforto intelectuais caminhando pelos mesmos sendeiros.
Entretanto, devo-lhes dizer que não achei frase melhor para começar. Sinceramente, quando redigi este texto não me sentia muito criativo. Talvez um pouco literário, mas não criativo.
Ademais, enunciar-me com o “do Eu ao Outro e reciprocamente” não implica repetição, mas a ratificação de algo que, por mais que sempre seja dito da mesma forma, adquire um novo sentido a cada vez, visto que a relação proposta, que está para além da dialética e da própria analética (por que não?), é uma relação de afeto e, que, portanto, não pode jamais ser a mesma. Ela é em-si sempre nova, por isso nunca é, mas está-sendo. É a idéia de movimento exterioriza melhor aquilo que se dá em relação.
Então, falemos desta relação:
O professor no curso de Direito assume uma função um tanto quanto angustiante. Ao passo em que é indispensável para fazer inserir seus pupilos no mundo jurídico, ensinando acerca de categorias jurídicas e novos vocábulos, bem como o diálogo entre tais categorias; é igualmente prescindível, porquanto todos os acadêmicos, presume-se, são alfabetizados e, por conseguinte, capazes de entender a problemática do Direito, bastando, para tanto, algumas horas de leituras diárias da doutrina ou de um dicionário especializado que tente desvendar os signos que se apresentam ao iniciante.
Contudo, o fenômeno se torna mais emblemático quando, além de viver sob o jugo do inafastável binômio necessidade-prescindibilidade, o professor toma para si a obrigação de servir como instrumento de emancipação social. Em outras palavras, o educador, para ser honestamente assim chamado, precisa ser um revolucionário. Não digo um revolucionário que sai com bandeiras que servem para além de expressar um ideia também depredar. Falo da descoberta de territórios desconhecidos (Warat), da possibilidade de uma profunda revolução do desejo. Tal como Warat, penso em microrrevoluções desejantes, que poderiam configurar o que Guatarri chamaria de uma nova cartografia dos desejos.
É isso mesmo, o professor de Direito, que muitas vezes “encena seu amor vencido pela lei” precisa desconstruí-la. A lei que em determinados momentos liberta, também é meio de manipulação e opressão legitimadas pela mídia e pelo poder público. A mesma lei que defende a vida, mata e castra. Na academia, o culto à lei ainda é constante, e isso se dá não porque se ama a lei, mas porque ela dá poder: o poder de quem conhece. Em termos foucaultianos: o “saber-poder”.
A propósito, para prosseguir em nosso passeio, é preciso falar de algo paralelo a ele, talvez de alguém que caminha ao lado, mas que, transgredindo as leis da geometria, deixa de trafegar paralelamente e vem ao nosso encontro, diagonalizando-se ou perpendicularizando-se. Pois bem, o “algo paralelo” de que falava concerne a um fenômeno da vida como um todo, não é particularmente intrínseco à academia, mas nela se potencializa e, surpreendentemente, exterioriza com mais força, embora veladamente.
Falo agora das formas de relacionamento que a sociedade possui: de um lado aquela em que predomina o Amor e, de outro, aquela em que o poder se sobressai. Nas relações de poder pensa-se o mundo em termos de hierarquia, e esta pode se apresentar de infindáveis maneiras. Na sala de aula, a postura sobranceira, arrogante e antidemocrática do professor expressam bem isso.
Por sua vez, as relações de amor são pensadas a partir do ponto de vista da igualdade com o respeito às diferenças. Boaventura de Sousa Santos disse uma vez que “temos direito à igualdade sempre que a diferença nos inferioriza, mas temos direito à diferença toda vez que a igualdade nos descaracteriza.” Assim, não falamos em no respeito ao Outro por temor do poder que este possui, mas porque sentimos esta necessidade. Trata-se muito mais de uma questão de sensibilidade do que de uma razão racionalizante que se prende aos ditames do poder e a ele determina sejamos submetidos.
Em outros termos, o amor enquanto norteador inter-relacional exige o contato com o Outro em termos de igualdade. Para ser correto, sequer é necessário este pensamento, eis que pensar designa fenômenos da consciência, e o amor, ao contrário, está no campo do inconsciente. É tão evidente que pode estar escondido.
Na academia, assim como na vida social, costuma sair vitorioso o poder. Mas isso só ocorre quando há uma carência enorme. Explico melhor: a psicanálise, e antes a filosofia com Schopenhauer, já nos ensinaram que somos seres desejantes. E o somos porque somos carentes. Só se deseja algo que não se tem, ou que se tem em níveis insatisfatórios. Então, pela lógica capitalista individualista, ao invés de nos relacionarmos sincera e abertamente com os que nos rodeiam, edificamos muralhas que só nos permitem visualizar e sermos visualizados. E só.
Nosso orgulho não nos permite assumir essa condição de carência. Então, tentamos acumular e exteriorizar poder tanto quanto nos for permitido. Na realidade, este modo de se conduzir acoberta uma falta imensurável. Quanto maior o desejo de acúmulo e exteriorização de poder maior é a carência. Como dizia Jung, “que a sombra aumenta proporcionalmente com a luz é uma regra psicológica.”
Antes que eu esqueça, tenho que lhes dizer como vejo a interação educador-educando. Os preceptores são como pais, os acadêmicos, filhos. E às vezes a família se desentende. Aliás, uma intolerância (maldita) permeia essa relação frequentemente. É claro, temos uma tendência natural a exigir a perfeição daqueles que amamos: pais e filhos se amam e, via de consequência, idealizam-se mutuamente, em que pesem as reações, vez ou outra, soarem um tanto agressivas.
Mas nós, enquanto acadêmicos, precisamos também da reflexão como meio para a compreensão, pois os professores, assim como nós, são crianças, e a pergunta: o que queremos ser quando crescermos? Talvez tenha como resposta: “ser igual ao meu professor”. Daí dizer, com Renato Russo, que precisamos nos amar como se não houvesse amanhã. E cá entre nós: na verdade não há. Costumamos dizer que nossos professores não nos entendem, mas e nós: os entendemos?
Bem, já me alonguei o suficiente para que o discurso se tornasse enfadonho, ininteligível e cheio de vaivens. Por sinal enunciei aqui um discurso inconstante. Diria até: um discurso da impermanência. Não poderia ser diferente, posto que ele trata da educação como um processo fundante da nossa subjetividade, a qual é construída a partir de nossas escolhas e desejos (como dito por André Newmann, interpretado por Michel Melamed) , mas de nossas escolhas e desejos em relação às escolhas e desejos do Outro – destacaria aqui, com Guatarri e Levinás: o “entre-nós” pedagógico como espaço da subjetividade (enquanto processo de subjetivação).
Não é à toa que tal ocorre. O vir-a-ser dos signos e da sua concatenação segue a lógica do devir afetivo inerente à vida. Opera-se, então, a reciprocidade afetiva inaugural. Os educandos, enquanto Outro da relação voltam-se ao Eu docente. Assim, caros mestres, assevero-lhes: quem vos fala não é o preposto duma coletividade de formandos: quem vos fala, são os nossos corações.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Trecho da minha monografia

 Disponibilizo a vocês um trecho da monografia que redigi recentemente, intitulada: "Por um Direito da transgressão: fragmentos amorosos para um discurso jurídico revolucionário". Ressalto que não constam as notas de rodapé com esclarecimentos e referências, posto que a finalidade é apenas divulgar o conteúdo. 


TRANSGRESSÕES FINAIS: MANIFESTOS PARA UMA ECOLOGIA DOS  AFETOS – OU FRAGMENTOS (AUDACIOSOS) PARA UMA (AMOROSA) REVOLUÇÃO LIBERTÁRIA: COMEÇO QUE VIRA FIM QUE VIRA COMEÇO

“Desacreditada pela
opinião moderna, a
sentimentalidade do
amor deve ser assumida
pelo sujeito apaixonado
como uma forte
transgressão, que o
deixa sozinho e exposto;
por uma inversão de
valores, é pois essa
sentimentalidade que faz
hoje o obsceno do
amor.”
(Roland Barthes)


Como Deleuze e Guatarri, “é preciso começar pelo fim”. É preciso iniciar em devir. Também o é possível em Warat, que começa seu “O amor tomado pelo amor: crônica de uma paixão desmedida” pelo fim, que constitui, portanto, seu começo e que, em seguida, vira fim. O texto como devir. Ele nunca é, quando termina, inicia-se… Trata-se de um instante mágico da escrita, aliás, de instantes mágicos, no plural, porque plural é ele – o texto. Nunca é o mesmo. O Amor é assim, é efervescente, é candente, é incerto, é imprevisível… É tudo isso e muito mais: é tudo isso e o seu oposto. Isso porque também é terno, sublime, delicado, ingênuo, caritativo, um castrador para os sádicos. O Amor se permite trafegar pelos túneis poéticos do paradoxo. Não à toa que Camões disse uma vez que:

Amor é um fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Pode-se dizer que o soneto de Camões, para o Direito, mas, sobretudo para a vida, é um devir, um devir-poético. O devir, como dito em outro momento, é sempre minoritário.Como a perspectiva poética é costumeiramente deixada de lado, à margem – por isso: uma poesia marginal, porque transcende a esfera da
racionalidade prosaica, é de se enunciar que ela devém juridicamente. O Direito agora está em um devir-poesia, devir-música, devir-afetivo, devir-amoroso. Levanta-se, então, um fragmento de insurreição waratiana: o Direito e a vida reivindicam “um canto do ambíguo, do devir permanente.” Warat defende uma ecologia afetiva, consistente, entre outras coisas, numa prática psicopedagógica que “permita verbalizar o fantasma do amor como condição da autonomia, como condição do vir-a-ser de uma sociedade povoada de indivíduos que se tornem, como diz Guatarri, ‘a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes’.”252 É dizer, que “a eficácia libertária de uma proposta ecológica depende de uma visão psicanalítica que possa cativar-nos para um devir de incertezas: o convite para a descoberta do
novo (…).”
Não obstante, tem-se uma erotização do texto, mais que isso, uma erotização do Direito e, por inequívoco, da vida. Em vão não é que se está a falar de ecologia dos afetos e de uma certa correspondência com o perfil transgressivo – apesar de, em princípio, o título destas transgressões finais ter sido criado sem um precedente
exato, uma inspiração específica da qual decorresse o seu nascimento. Luis Alberto Warat, certa vez assinalou amorosa e transgressivamente:


A ordem instituída e a regularidade são um princípio de morte instalado na vida. Para vencê-lo, devemos produzir um excesso, transtornando ao máximo a continuidade, isto é, erotizando o movimento regrado. Provocando o imprevisto. O erotismo é um excesso de imprevisibilidade. É a descontinuidade significando-se. (…). Enfim, o erotismo é um desejo de transgredir. Nesse ponto é que se dá em mim a fusão do erotismo e da marginalidade. É o território das significações, das perguntas e das respostas sem paradigmas, abertas ao infinito.

A propósito, discorrer sobre o Amor no Direito é um ato de transgressão. Transgride na medida em que contradiz os arrimos paradigmáticos (decadentes) da Ciência Jurídica (Moderna). Introduz os afetos no estudo, na construção teórica e, principalmente, na “pragmatização” jurídica de modo que não deixa, jamais, de lançar seu olhar ao Outro. Para agir subversivamente é preciso ter audácia. A audácia que desafia o ríspido, o frio, o cruel do Direito: a lei como premissa científica. Trata-se de compartilhar da mesma coragem de Warat e tomar para si “o dever de inscrever o amor e a emancipação no meio do poder.”
Falou-se aqui – e fala-se por aí – em libertação, em emancipação, em alteridade e compaixão – em uma palavra: revolução. No Direito não se pode mais assumir a postura de um filósofo sentado – contra quem foram lançados diatribes de Amor – ou de um jurista apático, agarrado à lei como que a um deus; transformando o que deveria ser tomado como parâmetro em mito. Recorrer à transgressão surreal, juntar o Direito à música: eis uma provocação surrealista. Opor a transgressão a todos os saberes, às normativizações, à pedagogia jurídica, à “pureza” no Direito, ao niilismo, ao pessimismo, ao conformismo. Enfim, transgredir a conservação do que foi imposto (demagogicamente) sob o argumento democrático, “(…) tomar parte na destruição de ideais ou de teorias obsoletas, ainda que isso deva perturbar algumas sonolências dogmáticas.”
Retomando a perspectiva surrealista é possível crer num Direito subversivo em relação à ordem quando esta é a da exclusão; do não-Amor; da renúncia e da castração amorosa. Subverter a si mesmo. Deve-se, então, transgredir para não sufocar os ideais do Amor. Mas em que sentido se está a falar em transgressão? Neste: Transgredir é transcender o limite do horizonte. É sobrepujar o encarceramento por ele produzido sem que se necessite comportar belicosamente. Trata-se de um ato de libertação. Libertar-se das grades e dos grilhões impostos pelo poder e aceitos docilmente – como?
Com efeito, falar de revolução é exigir a liberdade, é fazer valer o ideal democrático, é reconhecer que há algo de intrínseco, de profundo, de imprevisível, de humano na liberdade. “De que hablamos cuando hablamos de libertad? (…) “La respuesta: hablamos de amor.” Por isso é que revolucionar verdadeiramente
deve ter um fundamento amoroso, negando a cegueira produzida pela certeza e contemplando no “Amor, a única revolução verdadeira”
Escreveu-se aqui um texto sem um começo bem definido e se terminará de igual forma. Isso porque não se tem o fito de apresentar definições; ao contrário, a ideia é desconstruí-las, transgredindo-as amorosamente. Pautando-se pela ética da alteridade, pela compaixão, pela solidariedade ou por outro meio afetivo – pouco
importa. O essencial é o livramento (pluralista) de um monismo científico-normativo que castra os desejos humanos, seja qual for o caminho percorrido. No Amor não há “começo e fim”. Há um “sempre-começo”. Cosmopolítica e geograficamente pode-se dizer que (amorosamente) é possível sempre começar de qualquer ponto do mundo sem que nunca se encerre a trajetória romântica. O Amor no mundo como rizoma e a formação de uma ecologia dos afetos: assim é que a vida democrática será um vir-a-ser infinito, haverá um devir-amoroso; incerto, é verdade, porque é devir, mas ainda (e sempre) um devir.